Afegão teme que filhos virem terroristas com Talibã no poder: “Futuro é sombrio”
Publicado em 02/09/2021 às 06:50
![94252 94252](https://www.montanhascapixabas.com.br/wp-content/uploads/infocoweb/2021/09/02/thumbnail-for-94252.jpg)
![Sayed com cerca de 7 anos de idade, durante o regime passado do Talibã no Afeganistão Sayed com cerca de 7 anos de idade, durante o regime passado do Talibã no Afeganistão](https://i0.statig.com.br/bancodeimagens/2g/wl/lf/2gwllfv8luhzlfx5yo395c054.jpg)
No dia 15 de agosto, o grupo fundamentalista islâmico Talibã, tomou conta de Cabul, capital do Afeganistão . A partir desse momento, a população afegã entrou em colapso. O aeroporto da capital foi a saída que muitos encontraram para fugir do país junto às tropas americanas, que finalizaram a retirada dos aviões militares nessa segunda-feira (30) .
Imagens de civis tentando deixar o país pendurados em aviões militares dos Estados Unidos e relatos sobre o medo constante que assola a população local circulam nas redes sociais e chamaram a atenção do mundo todo.
O médico afegão Sayed Ibrahim Sadat, de 36 anos, mora em Cabul e, em entrevista ao iG , conta que, além do grupo já ter imposto diversas restrições à população local, ele e a esposa perderam o emprego após a tomada do Talibã. “Agora estou desempregado, assim como minha mulher e muitas outras pessoas. Estamos depressivos e sem esperanças como nunca estivemos em nossa vida”, relata.
Sayed morou no Paquistão 30 anos atrás e foi forçado a retornar ao Afeganistão em 2014, mas agora deseja sair do país com a família novamente. A principal preocupação do médico é em relação ao ambiente em que seus filhos vão crescer com o grupo extremista no poder. “Tenho três crianças: dois meninos, de 5 e 3 anos, e uma menina que acabou de nascer, com apenas 26 dias”, conta ele.
“Tudo é muito difícil agora. Meu maior medo é em relação ao futuro dos meus filhos, pois acho que eles vão se tornar terroristas se eu os mandar para a escola durante o regime do Talibã”.
O médico afirma que foi agredido na noite dessa segunda pelos combatentes do grupo com o cano da arma de um deles devido à sua tentativa de escapar do país: “O Talibã também jogou fora todos os meus documentos”.
![Combatentes rasgaram papéis que Sayed carregava Combatentes rasgaram papéis que Sayed carregava](https://i0.statig.com.br/bancodeimagens/e9/13/w6/e913w6yfzfxxo3z6ilmxz2e3i.jpg)
“Eles [combatentes do Talibã] não permitem que as mulheres trabalhem, ouçam música, estudem, cortem o cabelo, nadem, façam compras sozinhas e muito mais coisas básicas”, relata. “Agora, não posso cantar uma música, ou até assistir a filmes, mesmo meus filhos não podem assistir a desenhos na televisão”.
![Sayed foi agredido pelos combatentes do Talibã Sayed foi agredido pelos combatentes do Talibã](https://i0.statig.com.br/bancodeimagens/d4/mj/eu/d4mjeue6u0pb6cs63x1sig6wd.jpg)
Diante desse cenário, Rodrigo Amaral, professor de relações internacionais e especialista em Oriente Médio, explica que essa instabilidade no Afeganistão não é novidade.
“Não é 2021 que marca a ascensão do Talibã, ele é um grupo que vem de décadas passadas, ele tem uma parcela importante da população que reconhece a legitimidade desse grupo. A saída das tropas dos EUA nessas últimas semanas comprova que o projeto norte-americano de combater o terrorismo fracassou”.
O Talibã sempre foi um grupo com bastante força na sociedade afegã. Em 2018, as regiões periféricas do Afeganistão eram dominadas principalmente pelo grupo extremista.
“Quando os Estados Unidos invadiram e retiraram o Talibã, ele não foi destruído, ele se dissipou, ele foi para outros espaços na periferia do estado do Afeganistão. Eles se conectaram com líderes tribais e com outros espaços da sociedade que esse centro-urbano não se conectava. Era muito comum dizer que havia dois ‘Afeganistão’ na época, um seria aquele que era organizado pelos EUA com poder formal e reconhecido internacionalmente e o outro era do Talibã”, conta o professor.
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Questionado sobre o motivo do Talibã ter adotado uma imagem mais pacífica para esse novo regime, Rodrigo Amaral afirma que o novo comportamento é uma questão de organização e estabilidade.
“Não existe governo sem estabilidade e eles estão tentando pacificar, é um processo de organização. É natural que o Talibã utilize dessa narrativa, que não precisava ser usada em 1996, porque ele venceu uma guerra civil, era interna essa guerra, não cabia esse tipo de discurso naquele momento”, explica.
![Sayed teme pelo futuro dos filhos no país com o grupo extremista no poder Sayed teme pelo futuro dos filhos no país com o grupo extremista no poder](https://i0.statig.com.br/bancodeimagens/2x/5l/se/2x5lse0505k196gqet3j2xtu9.jpg)
Mesmo sendo conhecido por sua violência, lutas em guerras e por impor restrições à população , o grupo fundamentalista não pode ser considerado um grupo terrorista, visto que o terrorismo é uma prática e não uma interpretação qualitativa, explica o especialista. De acordo com ele, o Talibã utilizou do terrorismo enquanto método em alguns momentos de resistência e guerra.
Além disso, o internacionalista não acredita que o Talibã signifique a ascensão de um grupo terrorista no poder. “Ele é um grupo organizado, pensado por intelectuais islâmicos com força militar e tem reconhecimento da população”, afirma. “O que pode acontecer é ter atentados terroristas contra o Talibã, querendo reagir a esse novo governo”.
Sayed, no entanto, teme a força do grupo e afirma não poder dizer que ele e sua família estão seguros. “Eles estão indo de porta em porta atrás dos anti-Talibã e de quem trabalhou com líderes de governo anteriores”, detalha. “Acho que eles não sabem onde eu moro, mudo de casa todas as noites. Hoje, estou na casa do meu tio”.
O homem relata que tem tentado pedir auxílio às pessoas por meio das redes sociais, mas que, infelizmente, ninguém consegue o ajudar. “Eu não quero dinheiro ou nada do tipo, quero salvar o futuro dos meus filhos”.
Talibã e a comunidade internacional
Embora o grupo fundamentalista seja reconhecido por grande parte da população afegã, é necessário também o reconhecimento da comunidade internacional para que ele alcance legitimidade. À vista disso, o Talibã deve buscar possíveis parceiros políticos internacionais, como a China, Irã, Rússia e Turquia eventualmente.
O especialista analisa o cenário atual do Talibã e afirma que atualmente “é mais favorável”, comparado ao regime passado. “Já existem conversas iniciais com os diplomatas chineses, já existem expressões públicas dos russos, dos iranianos, já é muito mais do que o Talibã tinha em 1996-2001, época em que só a Arábia Saudita, o Paquistão e os Emirados Árabes reconheciam o governo. Se o Talibã conseguir o reconhecimento da China já é muito grande, porque a China tem capacidade suficiente para sustentar uma nova agenda política no país”.
Saída das tropas norte-americanas do Afeganistão
O Pentágono informou que o último avião norte-americano com civis, militares e autoridades dos EUA deixou Cabul por volta da meia-noite dessa segunda, no horário de Brasília . A ação encerrou um conflito de quase 20 anos no Afeganistão e partiu da decisão do presidente Joe Biden, que agradeceu os soldados envolvidos e classificou a operação como um “sucesso extraordinário” , na noite desta segunda.
Sayed, no entanto, pensa o contrário. “Biden nos deixou sozinhos e não foi bem-sucedido. Assim como o ex-presidente Barack Obama, ele não sabe que o Talibã vai ser um desafio para os Estados Unidos”, avalia. “Tenho certeza que o Afeganistão será um bom lugar para o terrorismo”.
Segundo o professor, com a retirada dos militares norte-americanos, o Talibã deve criar novas instituições, destruir aquelas que representavam uma tentativa de “ocidentalização” e aproveitar o poder que conquistaram no território.
O afegão diz não saber o que esperar daqui para frente. “Eu não sei o que fazer, porque falhei na minha tentativa de deixar Cabul”, afirma. “O futuro é sombrio. Estou apenas sem esperanças, aguardando algum tipo de mágica que sei que não vai acontecer, e rezando pelo futuro dos meus filhos”, finaliza.