Coluna Pomerana
Os rituais de morte na Pomerânia e suas influências nos descendentes no Brasil
Publicado em 04/11/2020 às 16:48
Durante a permanência do corpo na casa mortuária, observavam-se todos os detalhes: mãos que não permaneciam juntas, ou olhos que se entreabriam sinalizavam a morte de uma pessoa da mesma família nos próximos tempos; se dentro do caixão o rosto de uma pessoa idosa dava a impressão de ser mais jovem, isto significava que a próxima morte seria de um jovem na comunidade, para o contrário valia o mesmo; se o rosto de uma pessoa mais jovem dentro do caixão dava a impressão de ser mais idoso, alguém idoso seria o próximo a falecer.
Após oração, canto e pequena alocução feita pelo pastor, antes de se colocar a tampa no caixão, todos se despediam do morto, colocando sobre ele a mão direita, em seguida, indo para o local de sepultamento. Logo que o caixão deixava a casa mortuária os cavaletes sobre os quais este estava colocado deviam ser tombados de forma que os pés não mais tocassem o chão. As velas não podiam ser apagadas com sopro, no máximo com a mão. Segundo Carmo Thum, há relatos de que o pastor não aceitava determinadas práticas costumeiras das comunidades pomeranas no Brasil, tais como derrubar as cadeiras e os bancos que sustentavam o caixão, para não tocarem mais o chão.
Nos costumes fúnebres na Pomerânia, era na saída da casa mortuária que também se descobria qual o sexo do próximo morto. Se fosse homem que por último deixasse a casa, então o próximo a falecer seria do sexo masculino; se fosse mulher, então a próxima pessoa a falecer seria do sexo feminino. Se a casa mortuária não estivesse construída nos limites do cemitério, tinham de ser tomados muitos cuidados. O féretro não podia parar no caminho, pois do ponto em que parava, naquela redondeza sairia a próxima pessoa a falecer. Quando o transporte do caixão era feito por animais, estes eram atentamente observados, se tropeçassem ou olhassem em determinada direção, de lá sairia o próximo morto.
A crença de que havia pessoas que tinham o poder sensitivo de vislumbrar quem seria o próximo a falecer era difundida em toda Pomerânia. Junto à sepultura o pastor abençoava o morto e a comunidade cantava pelo hinário. Para os pomeranos o canto era muito importante, cantava-se pela despedida na casa mortuária e no cemitério. Todos se despediam do falecido jogando três vezes terra sobre o caixão. Era mau sinal, quando a terra do barranco cedia, enquanto o caixão era baixado à sepultura.
Quando a sepultura estava fechada e finalizado todo o serviço de juntar a terra, os ajudantes colocavam sobre esta as ferramentas usadas neste trabalho, e se a pá estivesse sobre a enxada, uma mulher seria a próxima a ser sepultada; se a enxada estivesse sobre a pá, então seria um homem o próximo a ser sepultado. Mulheres que faleciam na época de resguardo, suicidas e ciganos, não eram sepultados na mesma ordem em que jazem os outros. Eram sepultados à parte perto do muro ou da cerca do cemitério. Ainda para Rölke, na celebração no cemitério, toda a comunidade se dirigia à igreja onde o pastor fazia uma prédica. Dependendo dos honorários, esta podia ser breve ou longa com muitos detalhes sobre a vida do falecido. Em geral, uma longa e detalhada prédica custava cinco Taler e incluía o “Ruhmesetel”, onde o pastor relacionava todas as boas obras que o falecido realizou em vida. “Ruhmesetel” pode ser traduzido como “ficha de elogios”.
Na Pomerânia somente famílias abastadas podiam custear uma prédica longa. Por volta do ano de 1840, o empregado de um latifúndio recebia em torno de dezoito Taler ao ano. A maior parte dos pomeranos que imigrou para o Brasil era constituída pelas famílias destes trabalhadores.
Depois deste ato religioso, a vida normal reiniciava com o “Gräwniskost,” uma refeição mortuária da qual participavam todos os presentes. Esta refeição acontecia na residência do falecido e, já no dia anterior ao sepultamento, todos traziam frangos, manteiga e leite. Estas refeições eram conhecidas pela comida abundante como sopa de galinha, assados, arroz doce, café, pão e bolos. Se no início havia ainda constrangimento, este logo cedia lugar, após a ingestão de aguardente. O resultado era uma festa de confraternização muito animada e barulhenta.
Além da comunhão, essa prática significava alimentar também os parentes que vinham de outras localidades para o sepultamento. De acordo com Dr. Seibel, nas comunidades pomeranas capixabas mais isoladas os velórios costumavam ocorrer nas casas da família do falecido. Da casa saía o cortejo fúnebre em direção ao cemitério onde todos acompanhavam o momento do sepultamento. Concluído o sepultamento, parentes e conhecidos que vinham de longe precisavam ser alimentados. Se no dia a dia se fazia o pão de milho, neste momento especial era preciso oferecer o melhor que se tinha: wëtbrood (que em pomerano significa pão branco de trigo). Comer wëtbrood depois do enterro de certa forma se constituía no início de todo um processo de luto. Segundo Seibel, essa era uma tradição que persistiu até o final do século XX em diversas comunidades pomeranas no Brasil. A refeição com wëtbrood preparada pelas vizinhas para depois do sepultamento, fechava todo este círculo de nascimento, vida e esperança por uma nova vida. Para Seibel, a própria confraternização com a refeição quase ritualística, comendo o wëtbrood depois do sepultamento de um familiar, não se justificaria somente pela necessidade de alimentar os familiares e amigos do falecido antes de empreenderem sua jornada para casa, possivelmente é uma herança dos tempos que antecederam à cristianização no começo do século XII, quando os “wenden”/pomeranos realizavam cultos vinculados a refeições ritualísticas. Entre os “wenden” eram muito frequentes as histórias, narrando feitos nos quais a vida e a morte pareciam ser uma coisa alheia ou externa ao indivíduo, como algo que se pudesse esconder entre os elementos da natureza.
É crença pomerana que o reino da morte é capaz de interferir e se manifestar na natureza e na vida dos homens. Por isso eram necessários alguns cuidados. O grito da coruja era visto como prenúncio de uma morte iminente, sonhar com roupa branca, esvoaçando no varal, significa morte, cachorros uivando à noite prenunciam a morte. Quando um relógio para, inexplicavelmente, a morte pode estar se anunciando. Para Rölke, os mortos tinham também a capacidade de voltar pessoalmente, e, se fossem provocados, podiam azucrinar a vida dos viventes. Assim sendo, durante o féretro era proibido falar mal do morto, pois sua alma ouviria as maledicências e acusações e voltaria para se vingar.
Mas também se contava com “visitas dos mortos”, que podiam ser amistosas e pacíficas. Por isso, não se mexia na cama sobre a qual determinada pessoa havia morrido. Pelo menos durante um dia, após o sepultamento, tudo era deixado como estava no momento do falecimento. Quando o cemitério ficava num distrito mais distante, colocava-se, na volta do enterro, palha na divisa da propriedade, para que o morto pudesse descansar, quando quisesse visitar sua casa, sua propriedade.
Rölke afirma que na Pomerânia existiam inúmeras histórias de pessoas que não conseguiam sossego na sepultura. Por isso, vagavam e andavam como assombrações, assustando os vivos. Dizia-se “hai hät sich mild” que “ele se manifestou,” ou “hai spuikt” que “ele está assombrando,” ou, “hai mut wandre” que “ele precisa vagar”. Vários eram os motivos que poderiam provocar falta de sossego para o morto, como: se em vida tivesse jurado falsamente; levado segredos para a sepultura; andasse de consciência pesada.
Também a família podia contribuir para a falta de sossego do morto: se tivesse xingado o moribundo nos últimos dias de vida, ou se não tivesse atendido ao seu último pedido antes de morrer. Por isso, era necessário estar atento para o último pedido da pessoa que estava falecendo. Sempre havia como fazer frente a estas visitas indesejadas: encostava-se uma vassoura na frente da casa, ou penduravam-se panos molhados na porta de entrada.
Mas havia também aqueles mortos que à noite saíam das sepulturas para arrastar parentes vivos para dentro delas. Eram chamados de “negen dood måkers”, os “que matavam às nove horas da noite” ou “que matavam nove pessoas.” Recebiam também o nome de “bijst ou Monster”, de “monstro” e de “Nåhtehrer”, “aquele que é ávido, insaciável, que ainda precisa saciar-se depois”
Essas pessoas geralmente já nasciam com esta sina. Dizia-se por exemplo, que crianças que nasciam com dentes tinham este destino. Contra estes visitantes indesejados já se tornava mais difícil criar defesas. Mas havia como se defender, colocando-se uma moeda dentro da boca do defunto, ou enterrando-se este de cabeça para baixo, contrário a todos os outros jazigos, para que ele tivesse que se saciar com areia e terra e não com pessoas. A modalidade extrema de se defender destes monstros, era abrir a sepultura à meia-noite, decepar a cabeça e deitá-la entre os pés. Isto é “matar” o morto mais uma vez. Esta prática ainda pode ser comprovada no ano de 1865.
Rölke conclui afirmando: notável é a fidelidade, o respeito e o amor que o pomerano presta a seus mortos. As sepulturas por vezes são obras de arte, com madeira entalhada ou pedras trabalhadas. No domingo de eternidade, todas as sepulturas são enfeitadas com coroas e galhos de pinheiro. Para o Natal são colocados pinheirinhos sobre as sepulturas. Segundo Martin Dreher, nas comunidades pomeranas no Brasil, em geral, um ano após o sepultamento a pedra tumular era inaugurada. No último domingo do ano eclesiástico, o domingo antes do primeiro domingo de Advento, havia visita aos cemitérios, “era o domingo da eternidade”. Aos poucos, sob influência do catolicismo dominante, a visita aos cemitérios passou a acontecer em 2 de novembro, no dia de finados.