Espaço do Leitor

O “cuca”, o “mestre cuca” e o forneiro do forno fogão “mestre cuca”

Publicado em 22/08/2019 às 14:59

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O bolo designado cuca, ao qual se atribui amiúde por erro gramatical o género feminino, é um bolo cozido ou assado em tabuleiro de chapa metálica. Este modo peculiar de assar ou cozer o bolo cuca significa que ele não é um bolo feito em fôrma, dado que não pode ser desenformado e cortado em fatias, mas apenas cortado em pedaços enquanto ainda está quente dentro do tabuleiro acabado de sair do forno. O formato de cada pedaço pode variar, segundo o gosto de quem o corta, geralmente o do forneiro, em quadrados, retângulos ou até losangos. Na imagem aqui ao lado é visível um bolo de maçã feito em tabuleiro acabado de sair do forno.

O bolo cuca é originalmente uma criação culinária dos forneiros que se ocupavam do forno fogão que funcionava a carvão chamado “mestre cuca” então existente no Século XIX por todo o Brasil. O forno fogão “mestre cuca” (rangemaster cooker) era um aparelho de cozinha fabricado no Reino Unido, e trazido ao Brasil por importadores espalhados por todo o País. A importação desse aparelho de cozinha ocorreu desde meados do Século XIX até cerca do início da grande depressão económica na década dos anos 1930. O dito tipo de forno fogão mais conhecido por “mestre cuca” apetrechou durante décadas as cozinhas dos maiores restaurantes e hotéis brasileiros. De aí ser impossível determinar onde, quando e por quem foi criada a receita original do bolo chamado cuca.

Como é óbvio, o nome cuca reporta-se ao vocábulo inglês cooker [k’ukə], que deu origem ao nome aportuguesado “mestre cuca” atribuído a todos os modelos similares ao citado forno fogão. Há entre outras, uma definição relativa ao vocábulo inglês cooker que consta do dicionário britânico Merriam- Webster onde se lê a seguinte explicação: [cooker (noun), type of stove, 1868, from cook (v.) + -er]. Este aparelho de cozinha vem também referenciado como “coal cooker” (forno fogão a carvão) no quadro C8 publicado no dicionário ilustrado Michaelis (edição Melhoramentos, S. P. 1992), vol. 1 inglêsportuguês. O forneiro que se ocupava do forno fogão “mestre cuca” considerando as iguarias inigualáveis que preparava no citado forno fogão acabou por tomar o mesmo nome do forno fogão e transformá-lo em sinónimo de cozinheiro com habilidades excepcionais. Por causa dessa fama, já nos últimos anos do Século XIX a fantasia de carnaval mais comum que se usava nos dias de folguedo anteriores à Quarta-Feira de Cinzas era o barrete e o vestuário próprio do forneiro “mestre cuca”.

No início do Século XX houve um forno fogão do tipo “mestre cuca” que se sobressaiu, o qual era construído na fábrica riograndense da Companhia Geral de Indústrias (Gerdau/Schapke), cuja marca se designava pela parte nominativa da empresa: Geral. O forno fogão Geral era mais vendido aos colonos imigrantes alemães e igualmente aos seus descendentes radicados sobretudo em zonas rurais de todo o Brasil, mas com maior incidência nos estados situados no Sul do País.

A afinidade entre as designações bolo “cuca” e “mestre cuca” referente ao tipo de forno fogão que levava a marca Geral gerou alguma confusão entre o bolo de tabuleiro baseado na receita alemã (Streuselkuchen) e o bolo cuca da receita brasileira devido à semelhança entre receitas, visto que ambos são bolos de tabuleiro cozidos ou assados em forno. O bolo “cuca” sempre foi um bolo de tabuleiro em chapa metálica, cuja receita original incluia geralmente os seguintes ingredientes: ovos, farinha de trigo, manteiga, fermento de padeiro e a cobertura feita com açúcar areado (açúcar pilé).

Induzidos em erro os brasileiros devido à terminação em -a hoje em dia tendem a substituir o género masculino do vocábulo cuca pelo género feminino. Esta substituição é um erro gramatical crasso semelhante ao erro cometido quando se faz a inversão de géneros que ocorre entre as palavras homófonas e homógrafas, o grama (unidade de peso) e a grama (espécie de erva gramínea).

Como é evidente, não é a generalização de um erro pela sua reiteração sistemática que justifica e normaliza o emprego do erro e tão pouco são as receitas caseiras utilizando expressões erradas respingadas da línguagem familiar ou corrente que estabelecem a terminologia menos técnica da arte culinária. O termo farofa, e.g., de modo algum se aplica à cobertura Streusel que compõe o Streuselkuchen. O vocábulo farofa provém do latim far[-ina], «farinha» + offa, «bola de massa». O termo farofa em todo o Brasil antes de tudo significa «comida feita de farinha de mandioca e gorduras» (em alemão: geröstetes Maniokmehl und Fett). Ainda se deve considerar que a palavra “farofa” simplesmente não existe no português europeu, contudo, há um termo na culinária portuguesa foneticamente parecido com essa expressão que é o nome farófia¹, mais usado no plural farófias², cuja origem ainda é desconhecida. O nome português farófias significa «um doce feito com clara de ovo, leite, açúcar e canela». O nome “farófias” ao ser transosto para o português brasileiro tomou a forma “farofas” (eliminando assim o som da vogal i), porém essa alteração ocorreu não pelas suas semelhanças gastronómicas, mas apenas devido às suas semelhanças fonéticas.

Este é o motivo por que, nem o aspecto friável (crumbly) da cobertura feita com o Streusel, nem os ingredientes que compõem o Streusel, condizem com qualquer tipo de ingrediente que compõe uma eventual comida chamada farofa, tanto seja da dita comida brasileira chamada farofa como do doce português chamado farófias. Assim quem entende que o Streusel é uma farofa/farófia e não utiliza um tabuleiro para fazer o bolo cuca ou o Streuselkuchen, mas uma simples fôrma de bolos revela apenas amadorismo, porque utiliza denominações notoriamente impróprias e métodos de execução demasiadamente improvisados. Como se nota, a arte culinária não se coaduna com a transitoriedade de preparações improvisadas, senão jamais será uma arte em que se aplica a sabedoria e os conhecimentos práticos adquiridos por tradição.

Quando se atribui o nome próprio “cuca alemão” (amiúde designado por erro no feminino “cuca alemã”) ao Streuselkuchen está implícito que o bolo original chamado cuca não é alemão, senão o adjectivo “alemão” (ou erroneamente dito “alemã”) seria dispensável e não se mencionava.

Se o nome cuca não tivesse a sua origem no nome inglês cooker, mas na palavra alemã Kuchen³ como é sugerido frequentemente, por mera iliteracia, o termo cuca resultaria de um processo de adaptação linguística que é impossível de ocorrer a partir do segundo elemento -kuchen do nome alemão Streuselkuchen. Esta impossibilidade fica comprovada pelo próprio nome Streuselkuchen que nunca até hoje foi aportuguesado e muito menos traduzido. Enquanto o vocábulo inglês cooker [k’ukə] sempre foi traduzível em português e significa, entre outros significados, o atrás mencionado forno fogão que funcionava a carvão (coalcooker), e hoje em dia funciona também com outros combustíveis. Por exemplo: um dos mais modernos modelos da marca britânica Rangemaster.

O forno fogão profissional (mestre cuca) fabricado ainda hoje no Reino Unido (Inglaterra) e que se classifica na linha cookers da marca Rangemaster. O modelo da imagem aqui ao lado está composto por um Rangemaster profissional e o estilo de forno é um forno fogão de cozinha (range cooker).

 

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1 Farófia (cozinha portuguesa). Doce feito com claras de ovos batidas cozidas às colheradas em leite a fervilhar e posteriormente cobertas com um molho confeccionado com leite que serviu para as cozer, engrossado com gemas e polvilhado com canela.
2 Versão em alemão: Farófia ist ein Wort aus der portugiesischen Kochkunst benutzbar meistens in die Mehrzahl, farófias. Das Fachwort farófia bedeutet eine Süßspeise aus Zucker oder Honig zubereitet mit geschlagenem Eiweiß, gekocht mit einem Löffel in kochender Milch, überbacken mit einer Sahne aus der Milch, die zum Kochen dient und mit Eigelb eingedickt und dann mit Zimt bestreut wird.
3 Na palavra Kuchen, o dígrafo de consoantes inseparáveis formado por ch representa um som gutural, que se pronuncia em alemão mais ou menos como o j da palavra espanhola trabajo; obtêm-se este som produzindo uma aspiração forte e áspera com a ponta da língua apoiada na gengiva dos dentes incisivos inferiores. O dígrafo ch é assim pronunciado, quando está imediatamente depois de a, o, u, au. O dígrafo ch quando tem esta pronúncia representa um som que é designado em alemão Ach-laut. O dígrafo ch só se pronuncia como k, quando seguido de s ou ainda em certas palavras de origem grega, p.ex. Fuchs [fuks] (raposa); Christ [krist], cristão. Como é impossível a terminação -en da palavra Kuchen transformar-se em a, e o dígrafo ch ter o som de k, logo Kuchen não se transforma em cuca [k’ukə], como se alvitra amiúde.

 

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